A rua da minha infância era uma
rua de mulheres, na parte da manhã. Todos os dias, por volta das onze, enquanto
o almoço ganhava corpo no fogão e a roupa da cama se arejava à janela, as
portas entreabriam-se e elas esperavam o carteiro no caminho.
Era a hora de todas as
esperanças, de alguns medos, de sonhos eternamente adiados. O Sr. Agostinho
tinha os olhos da cor da distância, claros de mar e de saudades e uma voz doce,
um pouco enrouquecida do sol e da chuva, dos subires e desceres das ruas
daquele tempo.
Na bolsa de couro do Sr. Agostinho,
guardavam-se segredos que as folhas de linhas azuis revelavam , no rasgar
cuidadoso do envelope, no estalar do papel, na nota que vinha dobrada em quatro
e que cheirava às venezuelas e aos brasis dos sonhos velhos,
“Minha querida
e sempre lembrada Maria”
na eterna vontade de ter casa
sua, de trazer anéis nos dedos ou um dente de ouro a iluminar o sorriso.
O Sr. Agostinho parava a rua da
minha infância, por volta das onze: era a carta de chamada que preparava outras
partidas, era a prova de vida do soldado que tinha ido lutar pela pátria, em
nome de um dever juvenil nas picadas do ultramar, era a saudade molhada de sal
de outros mares de quem tinha ido à procura de mundos, de vidas, de quem tinha
fugido da tropa, de quem não estava. Simplesmente.
Os ausentes faziam pontes de
papel com os que tinham ficado na rua da minha infância:
- Vizinha, recebi carta do meu
António.
E a vizinha lia as palavras e os
silêncios e os não-ditos e as perguntas e as respostas e as promessas,
- adeus,
adeus, até ao meu regresso,
que alimentava as semanas das
mulheres da rua da minha infância.
- Então, Sr.
Agostinho?
- Hoje, não há
nada.
E o silêncio. E o medo. E a
angustia de receber uma carta com a tarja preta do luto.
O Sr. Agostinho já não distribui
as cartas e os postais de paisagens de neve que chegavam em pleno Agosto.
Guardo dele, os olhos e a voz. Guardo o sorriso. E a imensa curiosidade de criança
de conhecer os futuros que abrigava dentro do saco.
Já ninguém espera o carteiro na
minha rua. O coração já não bate à vista do selo. Já ninguém limpa as lágrimas
ao ponto final,
“Adeus até ter
notícias tuas”.
E é pena.
Daí este Projeto: para que, nem as cartas, nem as memórias, nem as emoções se percam!
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