sábado, 31 de agosto de 2013

Conversas velhas


Em conversas velhas de tempos antigos, Lília desencantou esta fotografia. O pai, bomboteiro, expunha, no convés do Noruega, os bordados que trazia na lancha: uns devidamente certificados, outros, não.

Ficámos à mesa, desfiando memórias: que nadava entre as lanchas, com os rapazes, que o pai lhe gritava da canoa que voltasse para casa, que aquilo não era para raparigas, que eram tempos duros, que tem saudades, que.

 Viviam ali, na babugem do mar, no Beco do Socorro. Viviam dos navios e do que se passava à volta deles. De vez em quando, no bolso do casaco do pai, havia um chocolate, um sabonete, uma novidade. Era o luxo do mundo que entrava em casa.
Ficámos à mesa. Nós. Um pouco perdidos no navio, no olhar de marítimo do pai da Lília que tentava lembrar-se do número da licença que estava gravado na barreta.


 



segunda-feira, 26 de agosto de 2013

o cais das nossas vidas .....


A meia travessa, um encontro inesperado no deck do Lobo Marinho ….

- Estiveste de férias?

- Sim! E tu? Foste visitar a família?!

- Pois … tem de ser!!!

E por entre recordações de infância e adolescência, na ilha dourada, o cais do Porto Santo: pano de fundo para tudo o que de importante se passava nas nossas vidas naqueles tempos em que o sal do mar se misturava com o sal da vida…. tomou conta da conversa. Trindade Melim recordou, com um sorriso largo nos lábios e os olhos raiados de saudade, os tempos de menino ...

- Sabes, quando chegava o barco (Maria Cristina, Devoto, Arriaga) nós ficávamos à espera … Os homens descarregavam as mercadorias e nós, os pequenos, se avistávamos um carro (uma corsa) livre, pegávamos nele e ajudávamos a colocar as bagagens … Por cada carreto entre a ponta do cais e a atual Praça do Barqueiro ganhava-se 2$50 …

 - E davam mergulhos? – Perguntei, partilhando o entusiasmo e recordando também a azáfama do velhinho cais das colunas …

- Sim. Mas não muitos!!! Os estrangeiros eram poucos. Muito poucos!! Mas quando lá aparecia algum, um de nós atirava uma moeda (a servir de engodo) e um grupo começava a mergulhar… dava pouco … isso e os carretos talvez chegasse a 20 escudos … em dias bons, claro!!!

E fomos ficando, assim os dois, nesta conversa marinha, embalados pelo tempo que o balanço do barco sugeria….

- Um dia destes, hás de contar-me mais coisas.

Trindade prendeu os olhos no mar. Disse que sim.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

DE REGRESSO



 
Estamos de volta às Memórias das Gentes que fazem a história. Entre o Porto do Funchal, o Ultramar e os muitos países para onde os madeirenses levaram a ilha. Neste Palácio das Mercês, queremos ouvir a sua história de vida, valorizar os documentos que repousam no tempo, dentro de caixas esquecidas, entender a história do nosso arquipélago, a partir das suas lembranças, dos registos que foi fazendo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
Estamos de volta. Aqui. Venha ter connosco!
 
RUA DAS MERCÊS, 8
FUNCHAL
 

terça-feira, 13 de agosto de 2013


RAPAZES DA MERGULHANÇA OU APANHADORES DE ESTRELAS

 

Eram rapazes com pele de mar. Era miúdos a crescer na pressa dos dias, a querer participar no movimento colorido das canoas a povoar o azul do mar.

Eram anfíbios: corriam atrás da bola de trapos no Campo Almirante de Reis e enfiavam os corpos franzinos no mar, como se aquele fosse também o seu lugar. E era. Eram apanhadores de estrelas. Ora do céu. Ora do mar.

Quando o navio chegava, saltavam para a água, da canoa ou do navio, ao encontro da moeda que os ingleses lhes atiravam. Se branca, melhor. Dava para mais: para um almoço de meio pão com molho, para uns cigarrinhos que ajudavam a enganar o tempo.  

Alguns eram verdadeiros artistas – desenhavam movimentos aéreos, atravessavam o navio de ponta a ponta a ponta, apresentavam a moeda presa entre o polegar e o indicador ou entre os dedos dos pés.  E pediam palmas. E agradeciam como os verdadeiros acrobatas. E queriam mais.

Nas canoas, outros rapazes preparavam-se: o Anão, o Venena, o Jana e os outros, os da mergulhança. Às vezes, tentavam fugir. Da mesma forma que fugiam da escola. Outras, eram apanhados pelo Cabo do Mar, ou porque não tinham licença, ou porque….

Quando os barcos vinham de noite, saltar do barco era uma aventura maior. Era como se uma estrela saltasse do céu e descesse aos ziguezagues, no bailado prateado da maré. Tinha de ser branca. Melhor, portanto.

Às vezes, enganavam os turistas – talvez não se chamassem assim, nesse tempo, os senhores e as senhoras que se embebedavam da beleza da aproximação a terra. E enfiavam a moeda – que, efetivamente, tinham apanhado – na dobra do calção de ganga rude e pediam mais.

Desse tempo de meninice, ficaram os restos dessa meninice que ainda se percebe nos olhos do Duílio e do Jana. Sobrevivem à vida, às marés e às mudanças. Sobrevivem e contam, com orgulho, como eram os tempos e as coragens, como era a vida na Rua de Santa Maria, de que cor eram os sonhos, com que linhas se cozia o futuro.

Os outros miúdos olhavam-nos com alguma inveja. E imitavam-nos, saltando das rochas da Barreirinha, atrás de caricas brancas como as moedas que vinham do resto do mundo. São parte das Gentes que fazem a Historia. Guardamos as suas Memórias, no âmbito do nosso Projeto, no Centro de Estudos de História do Atlântico. Graças a este Projeto de Memórias, é possível descobrir novos heróis e protagonistas da ilha, da cidade e do porto do Funchal. Estes meninos-mar são personagens da História do Porto. São heróis de uma cidade com o mar aos pés. Não podemos deixar que o tempo os esqueça.
in JM: 13 de agosto