segunda-feira, 24 de junho de 2013

.... um apertado abraço ...


Angola

Cacúlo Fazenda, 9 de Julho de 1916
 


Minha querida irmã,


Primeiro que tudo desejo que estas duas linhas te vão encontrar de perfeita saúde que quanto à minha vou andando um pouco sofrível.

Como até à data não recebi carta nenhuma tua ainda, isto devido aos vapores, pois que agora o Governo apossou-se duns poucos de vapores alemães parece até impossível que haja por enquanto só um vapor por mez de Lisboa para Angola como consta; resolvei então mandar-te os 150$00 que na última carta que escrevi te dizia.

(…)

Como já te disse na outra carta este dinheiro é para comprar metade da casa e cozinha e também algum bocado de fazenda, visto tu não poderes comprar sósinha.

Tem paciência. Vê se podes pedir o resto que falta. O Candido já mandou-me dizer que Augusta tinha já embarcado para a América. Será verdade? (…) E com respeito a João? (…)

Por agora não posso ser mais extenso senão que recebas muitas recomendações e um apertado abraço deste teu irmão que te deseja mil felicidades.

 

Francisco Gregório Teixeira

segunda-feira, 17 de junho de 2013

coisas de Mulheres.....


 


 
Porque memórias puxam memórias, Fátima Correia partilha histórias que se cruzam, se entrelaçam, se constroem.... à volta do porto, da pesca, da estiva, do bombote....

Os homens iam para o mar. As mulheres ficavam. À espera do que o mar levava. À espera do que o mar trazia. Às vezes, quando a faina era longe, nas águas dos Açores, as mulheres vinham esperá-los no ali mais perto dos abraços. Vinham de Machico e passavam a noite num quarto grande da casa da tia, um quarto, assim, ao comprido....  onde dormiam, a lastro, no chão, umas com as outras, na solidariedade da saudade.

Maria de Fátima vivia naquela casa. Era a casa da tia, casada com o Meia Noite, uma casa de muitas vozes, de muitas mulheres.

A mãe bordava. Como a maioria. Fazia palas para camisas da noite e pontos elásticos. Bordava e criava os filhos:

- Nasceram 10 filhos à minha mãe.

Lembra-se das cestas que as mulheres preparavam com a comida dos homens. E dos passeios ao Almirante Reis, para ver passar gente....

Conta mais coisas. Mas perde-se, sobretudo nos nomes que a memória lhe traz. De outras mulheres: a Botica, as Viloas, as Maroas, as Nonos, a Maria Escala, a Cigarrinha, as Campanárias, as Louras, a Cambita.... 

Sorri. A cada alcunha pertence uma história. Ou um diz que disse. Coisas de mulheres. Não conta tudo. Suspende dúvidas no ar. Coisa de mulheres, também....



Women talk….
One memory pulls another, just like cherries. Fátima Correia has shared childhood tales that mingled together and were placed around the port of Funchal, the fishing village and the people who lived at the seashore.
Men used to go to sea. Women stayed at home. They waited for whatever news the ocean brought back. Sometimes, and because fishing had to be done far in the Azores Islands, women came to Funchal in order to meet them. Some used to come from Machico and spent the night in Fatima’s aunt house. They slept in a corridor … on the floor, one next to the other sharing the longings and the suffering.
Maria de Fátima has lived for a very long time at that house. It belonged to her aunt who had married a man whose nickname was Midnight. It was a house full of female voices.
Her mother embroidered. Just like most of the other women. She used to embroider night gowns and this is how she raised her children:
-          My mother gave birth to 10 children.
Fátima also recalled the lunch baskets women used to carry to her husband’s. And  the walking at Almirante Reis, just to see people pass by…
She told us about so many things. And sometimes words got in the way.. she has lost memory about some of the names but still she remembered some of the nicknames: a Botica, as Viloas, as Maroas, as Nonos, a Maria Escala, a Cigarrinha, as Campanárias, as Louras, a Cambita.... 
She smiled every time she pronounced one of these nicknames. Each one has a story to tell, or a story to make up. Just like women talk. She did not tell everything. There were so many silences, so many unspoken words… just like women talk, too.
 
 


sexta-feira, 14 de junho de 2013

memento mori.....


 

 
 
 
 
Todas as fotografias são memento mori. Tirar uma fotografia é participar da mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade do outro. Exatamente por se talhar um determinado momento e o fazer estacar, toda a fotografia testemunha o impiedoso passar do tempo.
Susan Sontag


 
 
 



 
Fotografar pessoas é violá-las pois conseguimos vê-las tal como elas nunca se viram, conseguimos entendê-las como elas nunca se entenderam;  é transformar pessoas em objectos que podem assim ser possuídos.
Susan Sontag


 
 
   All photographs are memento mori. To take a photograph is to participate in another person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability. Precisely by slicing out this moment and freezing it, all photographs testify to time’s relentless melt.
(...)
To photograph people is to violate them, by seeing them as they never see themselves, by having knowledge of them that they can never have; it turns people into objects that can be symbolically possessed.
Susan Sontag















sexta-feira, 7 de junho de 2013

Quantos tempos tem a guerra?


O verbo tem vários tempos. A vida tem vários tempos. O tempo tem várias vidas. E a guerra? Quantos tempos tem a guerra?

Poderá parecer estranho mas a guerra não tem tempo, porque quem vai à guerra sabe da eternidade que carrega para todo o sempre.

No entanto, cada militar fazia a (sua) contagem do tempo – e a contagem do tempo era apenas uma só – os dias que faltavam para regressar a casa.
 
 
 

Ao longo destes meses, temo-nos deparado com estratagemas, pequenos truques de como registar de forma visível [tal como uma tatuagem] o passar dos dias.

Partilhamos aqui alguns desses calendários de guerra. Sim. São calendários. Não tem fotos de paisagens nem meninos ou meninas com caras de anjo mas guardam a paisagem de quem espera o fim do inverno e o regresso da primavera.





What is the length of a war?


A verb has different tenses. A life has different times. And time has different modes of living. And what about war? What is the length of a war?

Odd as it may seem, war has no time. All those who have been into war know how eternal it is for once you have been in a war you will shoulder it forever.

However, each soldier counted time on its own – but the counting of the days meant only one thing – the days missing to return back home.

During these past months, we have come across different tricks and strategies to register the passing of days so as to make it visible [just like a tattoo].

We share here some of those war calendars. Yes, they are homemade calendars. They have no landscapes and no photos of baby angels but they mirror the hope of those who anxiously waited winter to end and the return of spring.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

CHEIO E VAZIO [DE GUERRA]


T. veio da guerra cheio: cheio de combate, cheio de dever cumprido, cheio de Africa [ cujo cheiro nunca se esquece] e cheio de saudades da ilha. Foi por isso que nem esperou pela passagem a que tinha direito e,  pagando do seu bolso, meteu-se no primeiro avião, com destino à Madeira. Deixou lá a roupa. Deixou lá vários anos de vida. Deixou lá alguns companheiros. E deixou lá Djáci e Fátima.

Djáci era o negro que ajudava lá no quartel. Entre tantas coisas, servia à mesa durante os almoços e os jantares do esquadrão.

Fátima era a negra que lavava a roupa e amansava a solidão do furriel T. que, em troca, lhe pagava muito mais do que ela pedia sempre que vinha entregar a trouxa com a roupa lavada.

T. veio da guerra vazio: Djáci e Fátima ficaram lá. Nunca mais soube deles. Julga que foram mortos [como todos os outros, sobretudo aqueles que conviviam com o inimigo].

- não faço ideia do que lhes terá acontecido- explicou com serenidade. [ aquela serenidade que só o tempo empresta às dores]

 Mas lembra-se deles[ porque há memórias que se colam a nós e que nos dão vida, sem que a gente se aperceba do seu fôlego].

 
 

T. came back from war feeling complete: he had fight, he had served his country, he had been in Africa [ an unforgettable land] and he missed the Island a lot. This is why he did not wait for the ticket he was entitled to and he paid his own trip back to Madeira. He left his uniform there. He left part of his life. He left some companions.  And he left Djáci and Fátima.

 

He was a Negro and helped at the quarters. He used to help at lunch and dinners. He served the meals to the officers.

Fátima was a Negro washerwoman. Every week she washed his clothes and tamed his solitude. In return he paid her so much more than she expected for washing the laundry and thus helped her to support a child.

T. came back from war feeling empty: Djáci and Fátima stayed there. He never heard about them anymore. He believes they were killed [just like all the others who had helped the enemy].

- I have no idea what happened to them – he explained with serenity [ the serenity that only time affords]

But he remembers them well. [ because there are memories that become our life even though we ever hardly feel their breath]