HISTÓRIAS DE GUERRA E DE PAZ (PARTE 2)
- E a guerra, Sr. F.?
- Não gosto de me lembrar. Mudávamos de sítio durante um
dia. À noite, havia emboscadas. Mesmo assim, uma vez, um rapaz abafou uma
granada com o corpo. Íamos morrer todos. Não sei se tinha coragem de fazer o
que ele fez.
- Um herói.
- Acho que a família recebeu uma medalha. Para quê?
Não sei se o silêncio que a minha memória guardou, foi o
silêncio da voz, ou o silêncio de mim.
- Doutra vez, o jipe que ia à nossa frente ficou
estilhaçado. Era uma mina. Por muito que viva, não posso esquecer. Nunca.
A mulher do Sr. F. calou-lhe a angústia:
- Chegou aqui que ele tinha morrido.
Contou que o pai que trabalhava para o Blandy, deitou ao
Comando para saber… Acontecia muitas vezes:
- Houve uma rapariga que se casou antes do noivo ir para a
guerra. Foi e nunca mais deu notícias. Foi dado como morto. E ela, que era
nova, voltou a casar… Mas um dia, ele voltou.
- E depois?
- Devia ter ficado dividida. Mas já tinha filhos…. Não sei o
que foi feito dela
[confesso que gostaria
de saber…]
A conversa, entretanto, foi mudando de rumo,
- Tinha um colega… era doente… só comia sopa… chorava todas
as noites… de saudades… do medo de morrer…. da dor dos pais. Rezava…. era
demais….
- E o Sr. Francisco, rezava?
- Eu, não. Quer dizer, pedia à Senhora do Monte que me
deixasse voltar… Tinha lá uma Bíblia…
Ofereci-a ao João.
[O João é o mais velho de oito filhos. Tinha os olhos presos
nos olhos do pai.]
- E em casa?
[lembrei-me das palavras de Pessoa e d’ O Menino da Sua Mãe:
Lá longe, em casa, há a prece,
Que volte cedo e bem,]
- Recebíamos notícias. Vinha o helicóptero – acho que era um
helicóptero – , atirava o saco e o sargento – devia ser o sargento – chamava os
números… Era uma alegria quando as notícias eram boas. Era uma dor quando não
vinha nada.
Uma nota de humanidade: os soldados liam as cartas sozinhos,
- dava sempre vontade de chorar,
mas o oficial chamava um por um para saber se estava tudo
bem, se as notícias tinham sido boas, se ….
Escrevia também: à noiva, à mãe. Nos aerogramas, não
pagavam. E dizia que sim, que estava bem, que ia regressar. Claro que não
contava do medo, nem da dor, nem
A guerra roubou-lhe a juventude. E a saúde.
- Mas voltei. Vim a 15 de agosto de 1964. Não sei se foi
milagre da Nossa Senhora do Monte…
Trabalhou muito para poder casar, três anos depois.
- Ainda dava saltos na cama…
- Nunca me hei-de esquecer. Nunca.
Rasgou as cartas. Guardou apenas algumas fotografias num
álbum que os filhos gastaram à força de o folhear. E três livros: a Bíblia, um
livro de receitas e um outro… proibido.
Guardou o silêncio. Não fala muito destas coisas.
- Já não dói tanto, agora.
E pronto. Agora, a sua história é de paz. Sorri. Cumpriu.
Cumpriu-se.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminar